domingo, 22 de março de 2015

Gaiola Aberta

Lembro até hoje de várias histórias da minha infância, mas essa eu guardei com um carinho especial. 
Acho que tinha 3 ou 4 anos quando ganhei do meu pai um canário amarelo dentro de uma gaiola. Minha mãe dizia que eu o amava tanto que vivia ao seu lado cantando. Aprendi a cuidar dele e a lhe dar carinho, mas percebi que só meu amor não era o suficiente. Pois algumas vezes ele ficava triste e não cantava. Eu sentia sua tristeza mas não sabia de onde vinha.
Então meu pai me disse que ele era um pássaro e que amava voar, amava a liberdade, e eu precisava abrir a gaiola e deixá-lo ir. Mas se ele também me amasse voltaria, porque saberia que ali era seu lugar, sua casa.
Então, mesmo não querendo eu permiti que meu pai abrisse aquela gaiola. 
Ao vê-la aberta ele saiu timidamente e voou.
Um dia inteiro se passou, e eu esperei ali. Igual a gaiola vazia estava meu coração também vazio. No dia seguinte ele também não veio, então passou uma semana e depois de tanta espera ele finalmente apareceu, cansado e sem rabo. 
Eu ainda era criança para entender a raridade com que essas coisas acontecem. 
Mas lembro do sentimento de alegria que confortava meu, ainda pequeno, coração.
E então por muito tempo foi assim, sua gaiola sempre aberta, e ele tinha a liberdade de ir e voltar. Saía todos os dias para passear, mas durante a noite voltava para casa.
Meus pais diziam que os vizinhos ficavam impressionados com a inteligência do meu melhor amigo. Mas na minha ingenuidade eu achava que aquilo era normal, que deveria ser assim o amor, livre. 
E assim foi a minha vida inteira, eu aprendi a deixar a gaiola aberta. Eu também entendi que ninguém possui ninguém a ponto de tirar a liberdade dessa pessoa. 
Um dia, aconteceu o que eu mais temia, ele não voltou. 
Os dias se passaram e ele nunca mais voltou. 
Meu pai me explicou que não era porque deixou de me amar, é que alguma coisa devia ter acontecido a ele, mas que devia estar bem em algum lugar. E então me disse que era importante lembrar somente das coisas boas, e que na vida seria assim, e eu precisava sempre seguir em frente que muita coisa boa ainda estava por vir.
E assim fui descobrindo que amar é muito difícil, mas também é muito fácil. Nem sempre somos correspondidos, mas se for recíproco não podemos deixar esse sentimento de posse roubar a liberdade de ninguém e nem matar o amor. 
Em algumas noites ainda escuto um canário cantando no meu ouvido. 
Ainda sinto meu velho amigo aqui ao meu lado, pertinho do meu coração que hoje é uma gaiola vazia.
E em outras noites acho que também sou um pássaro perdido, que ama voar e sentir-se livre, mas que também procura a porta aberta de um coração para se abrigar. 

sábado, 14 de março de 2015

Tarde de chuva

Acordei cheia de medos e receios, alguma coisa me sufocava.
Mas durante a tarde veio uma forte chuva. Fiquei olhando indecisa.
Então lembrei que, pensar demais me faria desistir.
Decidi sair na rua para tomar aquele banho de chuva.
Enquanto eu sentia cada gota tocar o meu rosto, 
eu também podia sentir-me inteira novamente.
Sem medo, sem culpa.
Senti minha alma sendo lavada.
Nem no passado, nem no futuro eu decidi estar aqui neste instante.    
Nem tristeza nem alegria, apenas paz. 

quinta-feira, 12 de março de 2015

A menina dos meus olhos

Quando estou sozinha vou até o espelho e fico a procurar por ela. 
Tem uma menina escondida dentro dos meus olhos. 
Já tentei convence - lá a sair, mas não consigo e então me acostumei, afinal ela tem sido minha melhor companhia.
Às vezes brincamos de desvendar o futuro, e outras vezes de reviver o passado. 
Às vezes sua presença é assustadora, parece um fantasma em minha mente. Um fantasma com acesso a todos os segredos guardados e a todos os tesouros escondidos.
Estamos tão distantes, e ao mesmo tempo tão perto. Gostaria que ela partisse, encontrasse seu caminho, e assim eu poderia seguir o meu.
Gostaria de ajudá-la, gostaria que ela fosse uma criança normal, mas ela não é. 
Gostaria que não me visitasse mais no espelho. 
Mas não reclamo, pois tem sido bom dividir a solidão. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

No teatro

O teatro era enorme, e eu estava em uma das pontas e ele...
Eu sabia que estava lá, mesmo no escuro e distante eu podia sentir sua presença.
As luzes se acenderam revelando os rostos da platéia e eu o procurei. 
Sim ele estava lá.
Exatamente do outro lado, oposto a mim.
Eu olhei de muito longe, mas podia sentir ele me olhando, foi como matar a saudade de tudo que nós nunca vivemos.
Mas quando eu consegui olhar para os lados, vi que não estava só, uma linda mulher o acompanhava.
Isso me doeu, me lembrei das vezes que me imaginei ao seu lado, ali no teatro, ou no cinema, ou ao seu lado em longas caminhadas. Nos meus sonhos a gente caminhava para o infinito.
Mas não, não era eu quem estava lá, compartilhando esse momento com você. 
Imaginei se ela estaria feliz só de estar ao seu lado, de sentir teu cheiro e poder te abraçar. Me perguntei se ela realmente sabia a importância desse momento, a importância da sua presença.
Mas, não poderia ser mesmo eu ali. 
Nossos caminhos não se cruzam.
Ele de um lado, bem acompanhado, e eu do outro, também bem acompanhada da solidão.
Tento confortar meu coração, dizendo a ele que o universo me reserva destino melhor.
Na verdade tenho vários caminhos, em um deles imaginei ter uma vida normal, com um amor comum, mas como essa parece ser impossível para uma pessoa incomum como eu...
Então me sustento a imaginar que meu caminho ainda é longo e distante daqui, pois agora estou livre. 
Não tenho mais nada para alimentar.
Sei que um dia tudo isso vai fazer sentido, eu sei que vai.
A solidão é só o primeiro passo para uma grande jornada.



domingo, 1 de março de 2015

Se um tiro resolvesse

Hoje pela manhã chovia forte, mas eu precisava sair do conforto do meu quarto. Que estava cheio de pensamentos, saudades e angústias. 
Precisava sair, me livrar de tudo isso. Porque especialmente hoje um sentimento forte me tomou por inteira e não cabendo mais em mim eu precisei dividir.
Quando esperava o ônibus para ir até a casa da minha amiga, ainda chovia, e havia um senhor também a esperar. Ele me olhou com bondade.
Fiquei observando seus gestos. Tudo parecia pesar, parecia não suportar o peso do próprio corpo, que devia ter mais de 80 anos, e nem peso da alma que parecia ter muito mais.
Decidiu ir até o outro lado da rua para pegar um cabo de vassoura para se apoiar, quase caiu. Eu sem saber o que fazer ofereci ajuda, mas ele gentilmente recusou.
Atravessou novamente a rua. Agora de bengala podia se apoiar melhor.
Tinha a barba bem branquinha, e carregava uma bolsa onde armazenava a urina. O que revelava ainda mais a fragilidade de seu corpo.
Já desistindo de esperar o ônibus, decidiu ir embora. Passou por mim, sorriu novamente e falou:

- Será que se eu comprar um revólver e der um tiro no ouvido resolve?

Eu na minha timidez apenas perguntei:

- Mas por quê?  
              
-Ah! Minha filha eu já sofri demais nessa vida. Não agüento mais. Mas sou temente a Deus, e vou esperar o tempo dele. Acredito que o inferno é aqui mesmo, e eu estou pagando por tudo, tenho que suportar.

Eu não sabia o que falar, ainda estava surpresa com a angústia daquele homem, que era maior que a minha. Eu apenas fiquei tentando sentir a sua dor, e como retribuição sorri de volta. E tentei em meu sorriso demonstrar ternura. Nem piedade nem compaixão, apenas ternura.
Ele partiu lentamente, mas aquela frase ficou em meus pensamentos:
“E se um tiro resolvesse?”

Não, não resolveria!!